sexta-feira, março 10, 2006

Fragmentos II

Tínhamos chegado da praia já tarde. O sol teimava em não se ir deitar e nós continuávamos a tenta-lo a ficar entre nós. Eram oito da noite quando decidimos finalmente abandonar a areia já morna. Chegamos a casa verdadeiramente estafados. Os miúdos estavam esfomeados e foi um dia de juízo convencê-los a tomar banho antes de irem para a mesa. O jantar ia ser simples. O dia tinha sido longo demais para grandes comidas. Alem do mais, pouco depois adormeceríamos pelo sofá e não era bom dormir de estômago cheio, pois dizem os antigos que provoca pesadelos. E isso era a coisa que menos precisava nesse momento. A minha vida tinha-se tornado ela mesmo num grande pesadelo.
Acabei o duche e vesti as calças do meu fato de treino e uma t-shirt branca de mangas. Enquanto me vestia veio-me á memória as férias na minha infância. De repente vi-me nas ferias de verão com os meus pais, num parque de campismo perdido por aí, pelo meu país. Passávamos o dia ao ar livre. Corria por montes e vales respirando um ar fresco e puro como só as montanhas nos sabem dar. Não havia mar ou areia, bolas ou raquetes, ou ainda pranchas de surf, como têm hoje em dia os meus filhos. Mas tinha um simples riacho onde me refrescava ao fim da tarde. O meu pai utilizava-o para outros fins. Pescava trutas “á linha” que a minha mãe confeccionava como ninguém, numa caldeirada perfumada de coentros e salsa.
Invadiu-me uma súbita e forte melancolia ao vestir aquelas calças de fato de treino. Á noite no campismo depois do banho nos lavabos públicos, vestíamos os nossos fatos de treino quentinhos, que só despíamos já dentro das tendas para nos enfiarmos nos nossos sacos-cama. Cada um tinha o seu e era facilmente reconhecível porque a minha avó tinha gravado em cada um deles a primeira letra do nosso nome, um R, um B e um J.
Fechei os olhos e estava lá. A minha mãe ajudava-me a vestir as calças do meu fato de treino azul, com duas riscas brancas fininhas na horizontal, ao longo da perna. Depois pacientemente me escovava o cabelo, que de tanto vento, sol e agua se irriçava completamente depois do banho. Sentia ainda a frescura na cara do creme Nívea que a minha mãe me espalhava cuidadosamente nas bochechas queimadas do sol. E também no nariz e na testa onde todos os anos insistiam em me aparecer inúmeras sardas. Sentia o cheiro da terra empoeirada, das pinhas acabadas de cair, da caruma que eu sempre juntava em montinhos para preparar as camas das minhas bonecas ou para lhes servir de refeição.
Abri os olhos. Que estranhas sensações nos podiam trazer uma simples peça de roupa. Quase que podia jurar que ouvira o meu pai ralhar comigo para eu comer o meu jantar sossegada....
Estas eram as primeiras ferias a sós com os meus filhos e viriam a ser também as ultimas. De uma forma racional, o Jorge tinha acabado por me deixar. E eu acho que com toda a razão. O meu marido lidou com a situação muito maduramente, mais do que se calhar eu estava a contar. Sem fazer escândalos, sem se exaltar. Apenas com uma profunda magoa e tristeza que eu consegui sentir por detrás dos seus olhos frios enquanto me comunicava a sua intenção de me deixar. Explicou claramente o que pensava fazer da sua vida e dos seus filhos daí para a frente. A casa podia ser para mim. Os filhos viria busca-los mais tarde. Apenas o tempo necessário para se instalar de novo e refazer as suas vidas. Não queria sequer discutir o facto de eu querer ficar com eles. Perguntou-me se eu tinha consciência do mal que lhes tinha feito e se ainda tinha coragem de pedir para ficar com eles.
- Somos ambos advogados Rita, e tu sabes bem as provas e testemunhas que tenho que me permitem ficar com a guarda dos nossos filhos. Peço-te que não entres em litígio por causa disso. Poupa-os a mais essa humilhação. Jamais esquecerão o que lhes fizeste.
Tal como diz aquela canção, as palavras por vezes doem mais, e para mim aquelas doeram mais do que qualquer agressão física que o Jorge me pudesse ter disferido.
Não conseguia sentir esse sofrimento nos meus filhos, ou talvez não o quisesse sentir. Os miúdos apenas queriam saber porque o pai não queria viver mais comigo. E eu envergonhada, ficava de lagrimas nos olhos, incapaz de os enfrentar e encolhendo os ombros dizendo que ele apenas não me amava mais. O que nem eu sabia se era completamente verdade.
O Jorge tinha-se mudado para o Porto definitivamente e teve o cuidado de me avisar que os miúdos iriam já em Setembro para casa dele e que tinha feito já as matriculas num colégio privado da cidade. Lembro-me da barafunda q fiz, dos gritos de injustiça que dei. Eu como mãe também queria intervir na educação dos meus filhos. Mas tal como vinha a acontecer já há muito tempo, o meu ex-marido foi ignorando todo e qualquer argumento que eu ia expondo e virando as costas bufou: “Sempre tens as férias, aproveita-as bem!”
Que vos posso dizer sobre o que aconteceu? Não sei. Passou-se muita coisa, e muitas delas ainda hoje o meu consciente tenta esconder-me. Lembro-me de ter encontrado uma ultima vez com o Victor. Lembro-me de ele me confessar que era casado, que tinha uma filha de 4 anos, que gostava da vida que tinha e que não sabia o que lhe tinha passado pela cabeça quando me conheceu. A certa altura parecia que me culpava de alguma forma pelo que tinha acontecido. Disse “Foi tudo tão rápido, davamo-nos tão bem, que parecia tudo normal, percebes Rita? Quantas vezes as palavras se aglomeravam na minha garganta prontas a contar-te tudo sobre a minha vida, mas sempre acontecia alguma coisa que as fazia recuar.” Pois lembro-me bem o que as fazia recuar. Devia com certeza ser também isso que o fazia avançar sobre mim com beijos e mimos, fazendo-me sonhar com o meu príncipe encantado de infância. Pois foi isso mesmo. Parece que tinha caído no conto do vigário, pelo menos foi isso o que senti. E era o que me diziam á minha volta. “Deixaste-te levar pelo lobo mau!”
A minha relação extraconjugal com o Victor durou cerca de um ano. O ano da minha vida. Em todos os sentidos, foi de facto o ano da minha vida. Durante esse tempo reaprendi muitas coisas. Coisas que achava perdidas, como saber o que era amar e saber como era sofrer a amar. Durante um ano eu e o meu amante multiplicamos os nossos encontros fortuitos na sua casa em Mindelo, sem eu jamais desconfiar da identidade daquele meu anjo. Da sua verdadeira natureza, a sua vida, os seus verdadeiros sentimentos. Acho que por isso também durante esse ano aprendi coisas novas. Aprendi como se vive vidas falsas, vidas duplas, como se enganar uma ou muita gente, como se pode deixar de se viver por se amar demais ou por amar errado.
Acham que isso existe mesmo? Amar errado. Que significa verdadeiramente isso? Amar quando se deve odiar? Viver para alguém quando se deve fugir desse alguém? Ou amar de forma errada, com a intensidade errada, a pessoa errada, no tempo errado, no sitio errado? Não sei, e por vezes sinto até dificuldade em saber o q é o erro.
O meu erro. Claro que o meu erro foi com certeza o de ter amado demasiado o Jorge e de lhe ter entregue de bandeja a minha vida. O meu erro foi o de ter dado a minha vida pelos meus filhos. O meu erro foi o de me ter apaixonado pelo Victor. O meu erro foi o de ter amado esse homem que fantasiei na minha cabeça e que nunca verdadeiramente existiu. O meu erro foi o de ter traído a minha família. Bem vistas as coisas, a minha vida assemelha-se a um cesto de uvas depois das vindimas, carregado, carregada de erros. Esse ano da minha vida foi de facto o ano da minha vida. Para o melhor e para o pior também.
Setembro não demorou a chegar e vi-me deixar separarem de mim os meus filhos. Vi os seus rostos de angustia e medo naquela tarde de Domingo em que o Jorge os veio buscar. Naquela tarde em que fiquei parada no meio da rua, vendo-os chorar no banco de trás do carro, impotente, enfraquecida pelos erros da minha vida, sem forças para impedir que o meu ex-marido me levasse o que restava da minha errada existência.
Foi como um sopro. Um sopro de vento, que tudo levou, excepto a dor e a solidão. A dor era tão funda que me deixava imóvel, incapaz de qualquer acto, qualquer movimento. Não sei como respirava ainda.
Assim se passaram semanas. E depois meses. Apenas os via aos fins-de-semana, só alguns, aqueles que coincidiam com os fins de semana em que o Jorge não os levava para fora. Não podia entrar no colégio. Visitas proibidas. Quando ligava ao Jorge a reclamar, sempre as mesmas ameaças, sempre a mesma sabedoria de advogado. Mais parecia viver num país árabe, em que a ditadura masculina tudo vence.
Aconselhou-me a viajar, a sair do país, a deixa-los em paz. Dizia que estavam bem, que estavam felizes e que sentiam cada vez menos a minha falta. Não era isso que sentia quando conseguia estar com os meus filhos. O Manel mal comigo falava e recusava os meus mimos mas isso não divergia muito do que fazia quando ainda éramos uma família. O Pedro mostrava-se mais meigo do que nunca. Uma vez virou-se para mim e disse-me que o pai já lhe tinha contado o que acontecera. Com os olhos cheios de agua, confessou que nessa altura desejou que eu não fosse sua mãe mas que tinha por fim descoberto que qualquer que fosse a asneira que eu tivesse feito, ele iria gostar sempre de mim e queria que eu continuasse a ser sua mãe. E sorrindo acrescentou, que me desculpava pela minha asneira, porque eu também o tinha desculpado de todas as asneiras que ele tinha feito quando ainda vivíamos juntos.
O Pedro tinha uma teoria muito própria sobre a nossa separação. Achava que o pai tinha saído de casa apenas para me pôr de castigo, mas que logo logo isso iria acabar e iríamos poder viver de novo todos juntos.
Aos poucos fui perdendo os meus filhos. Os seus fins de semana eram para festas, estudos ou viagens. As visitas e telefonemas iam escasseando. Ate me virarem as costas para viverem as suas justas vidas. Life goes on! E eu fiquei um pouco mais só, ou novamente só, como quando perdi os meus pais ou como quando pensei que o Jorge era a minha ultima réstia de vida. O que afinal se veio a provar que não era.

7 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Erros meus, má fortuna, amor ardente Em minha perdição se conjuraram...

3:57 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa [a] que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Luís de Camões

SORRISOS q.b.

4:27 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Todos nós erramos num ou noutro momento da vida... ninguém é perfeito!Mas todos nós precisamos de ser amados, e de olhar para nós, para o mundo, e descobrir que na realidade nós possuimos sempre algo de muito bom e nobre. Que nos faz capazes de lidar com todos os erros, todas as dificuldades, a aceitar e a vencer os desafios da vida. Que nos torna mais fortes, mais felizes com nós mesmos ... Adorei o texto Sofia! Fico à espera do Fragmentos III.
Um grande beijinho, Calaia

9:45 da tarde  
Blogger Alberto Oliveira said...

Mais uma história de vida, muito bem contada, desta feita um percurso descrito traçado de erros (como descreves) mas que bem poderá ser de opções; talvez as menos certas, no universo dito normal; mas opções. E quem não errou que atire a primeira pedra.

Um bom fim de semana! Bjs.

11:06 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Bela história, errar é humano...alguns é que pensam que não!
Bjs

4:58 da tarde  
Blogger Rui said...

Beijo.

5:47 da tarde  
Blogger Fortunata Godinho said...

Reler-te agora, neste altura da tua vida, apenas me ocorre dizer: ironia.
Je t'adore!
Pims

9:55 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home