quinta-feira, março 16, 2006

Fragmentos (Final)

Quando era ainda criança, talvez com os nove ou dez anos, achava que era uma pessoa especial e que tinha um Dom. Tudo porque conseguia-me lembrar da fisionomia de certas pessoas com as quais só tinha estado uma única vez na vida e há vários anos atrás. E apesar de momentaneamente me poder esquecer do seu nome, tinha a certeza de que essa pessoa já tinha passado pela minha vida. Para além disso, acontecia-me muitas vezes passar por certos acontecimentos que acreditava já ter vivido algures noutra época ou, quem sabe, até noutra vida. Aprendi mais tarde que a isso se dava o nome de “dejá vu” palavra francesa que traduz exactamente isso, acontecimento “já visto”.
Havia alturas em que quase jurava que aquilo que se estava a passar comigo, já me tinha acontecido no passado e olhava divertida a sucessão dos factos, comentando comigo mesma “Eu não te disse? Eu sabia que era assim que isto se ia passar!”
Foram precisos alguns anos para voltar a sentir aquela mesma sensação. Não que acreditasse agora que tinha de facto um qualquer Dom. Isso sabia eu, já algum tempo, que todos nós o temos, apesar de só alguns se aperceberem disso. Mas aquela velha sensação do “dejá vu” como reconhecer certas fisionomias ou lembrar de certas passagens, que jurava terem sido já parte da minha vida, tinha voltado novamente.
A única diferença dessa familiar sensação era que desta vez não vinha sozinha, e trazia consigo uma nova sensação, a da duvida angustiante. Perguntava-me se seria Deus que generosamente, ou por brincadeira, me colocava de novo perante o meu destino para que eu ou fugisse dele, ou cometesse de novo os mesmos erros.
Apercebia-me agora que desde a minha meninice até hoje, tinha vivido desligada de mim própria. E o facto de hoje me conseguir ouvir de novo, fazia-me sentir muito bem. E permitiu-me passar de novo a sentir e ver aquelas coisas que normalmente todos nós não conseguimos, por andarmos completamente alheados do mundo.
Tal e qual como uma criança que fica maravilhada quando toma conhecimento pela primeira vez de que somos seres pensantes e de que podemos falar connosco sobre tudo, divagar e aprender, assim me sentia eu. Maravilhada pela visão que novamente tinha de mim e que permitia de novo conhecer-me totalmente. “Conhecer-me como às próprias mãos” era se calhar a expressão que melhor se podia adequar ao meu novo estado de alma.
Tinha ouvido muitas vezes os meus pais comentarem entre eles ou com outros familiares, como eu tinha brincadeiras engraçadas durante a minha infância. Tudo porque conseguia ficar horas a falar sozinha (pensavam eles!) ou com um amigo imaginário, sobre todos os assuntos que me viessem à cabeça. Normalmente isto acontecia-me sempre que tínhamos que fazer uma viagem mais longa, para o local das férias ou até para a aldeia dos meus avós.
Penso agora que devem ter sido os sorrisos discretos com que via as pessoas reagirem a esta revelação, ou pelas consentidas festas na cabeça que todos insistiam em me fazer, que comecei a ficar incomodada e até envergonhada com este meu bizarro habito.
Com o passar dos anos, e depois de várias tentativas falhadas, consegui por fim controlar esse meu lado mais excêntrico e sonhador, e acabar definitivamente com essa “má” atitude.
Talvez só neste momento me conseguisse aperceber o porquê de em criança sempre ter falado muito comigo mesma. Esse hábito salutar de constantemente me interrogar sobre as pequenas coisas do meu mundo e de pôr tudo em causa, faziam-me compreender completamente a minha forma de viver e isso deixava-me sentir mais satisfeita e confiante na minha pessoa.
O meu erro tinha então exclusivamente residido no facto de apesar de esta ser uma atitude positiva, o fazer da forma mais bizarra que conhecia, que era falar em voz alta com os meus “amigos” imaginários, chocando todos os que então viviam à minha volta.
Felizmente agora tinha conseguido de novo reencontrar-me, e fazia-o de uma forma bem mais salutar e diferente. E digo felizmente sobretudo porque se com esta idade me pusesse a falar alto, sozinha, me poderiam considerar louca e corria o risco de mais uma vez me passaram condescendentemente a mão pela cabeça e me internarem num qualquer estabelecimento psiquiátrico.
Tinha começado a escrever! A forma como resolvi a questão da sanidade mental era a escrita. Passei a escrever sobre tudo e sobre nada, e fundamentalmente sobre o que me ia passando pela cabeça. Considero psiquicamente fundamental conseguirmo-nos ouvir interiormente e falarmos abertamente sobre tudo o que nos inquieta. E é muito benéfico quando finalmente o conseguimos passar para o papel. As inquietações parece que acalmam e conseguimos começar a vislumbrar diferentes perspectivas sobre o assunto. Ficamos mais calmos. E decididamente mais seguros de nós.
Por vezes acontece-me ter uma espécie de, e desculpem-me o termo, “vomito mental”. Nessas alturas pego numa caneta e descarrego uma imensidão de letras e palavras a uma velocidade quase infernal, no primeiro papel que me aparecer à frente. E por isso o faço de papel e caneta porque a velocidade das minhas mãos a bater num teclado de um computador ainda não conseguem ser suficientemente rápidas para acompanhar a velocidade dos meus pensamentos.
Só no fim, ao reler com calma tudo aquilo que a minha mente me ditou, consigo descobrir e aprender. E maravilhar-me com as coisas de que nós somos capazes de saber, sem saber que o sabemos.
Aprendi o hábito de escrever. Textos soltos, cartas, versos ou até frases sem sentido. Aos poucos fui-me reencontrando. E ao fim de um bom par de anos descobri a razão por tal me ter sucedido novamente. Sentia-me feliz! Tal como tinha sido durante toda a minha infância, até ao momento de passar a ter medo de mim e do que os outros pudessem pensar de mim.
A minha inocente felicidade de criança tinha-me dado a liberdade de sonhar e aprender em mim o que via a minha volta. Daí já nessa altura ter descoberto que tinha um Dom, e achar-me uma pessoa especial.
Pensando bem, nos anos que se seguiram não fiz mais do que tentar manter todos os meus erros e fraquezas bem longe de mim. Tentava envergonhada disfarçar as minhas fraquezas e negava os meus erros como se daí dependesse a minha própria existência. Percebo agora que foi essa luta feroz para me assemelhar com aquilo que achava que os outros queriam de mim, que acabou por me manter afastada daquilo que era. E em consequência disso, afastada da minha própria felicidade.
Acredito que a felicidade não é una, que não existe uma só felicidade, ou forma de ser feliz. Cada pessoa tem uma, apenas a terá que construir. À sua maneira, da sua forma.
Todas as recriminações que estupidamente fiz a mim mesma durante os últimos anos não me tinham deixado viver plenamente e só me tinham causado ainda mais sofrimento.
Mas mais uma vez digo que acredito que tudo isto me aconteceu, todo este tortuoso caminho, para que pudesse aprender a respeitar e aceitar-me como sou. A encarar os meus defeitos apenas como defeitos, e as virtudes, apenas como virtudes. Sem tentar arranjar alguma explicação ou solução para tudo. E se a vida me colocava de novo as mesmas situações, teria que as enfrentar de novo e cometer de novo os mesmos erros, se isso tivesse que ser. Não podia era de novo esquecer-me de mim, pensar pelos outros ou não viver só com o medo de errar.
Acho que finalmente consegui deixar de lamentar todos os erros do passado e até aprender com eles. Aprendi sobretudo a perdoar-me. E só assim consegui de novo ser feliz.
Estou certa disso agora e só por isso, por ter feito essa maravilhosa descoberta, me senti pronta para voltar.
E foi o que inevitavelmente acabei por fazer.


(esta foi a historia da Rita. A todos os que comentaram agradeço as palavras de apoio. Sintam o meu beijo e abraço em cada um de vós!)

9 Comments:

Blogger Rui said...

Ergo a minha taça ao regresso da Rita. Aos regressos.

Bjs.

10:09 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

è verdade, concordo contigo, cada um aprende a sentir-se feliz á sua maneira. Apesar d epor vezes ser muito dificil....
Gostei muito da maneira como escreves, continua, parabéns.

Bjinhos

10:46 da manhã  
Blogger Maria Liberdade said...

Gostei muito de te ler. Às vezes somos humanos e já nem sempre se vai a tempo de emendar.

Diz á Rita que não há tribunal nenhum que retire os filhos à mãe por esta ser infiel. (HEHE, defeito de fabrico...)

Ps Sorry pelas ausência mas ando com mt falta de tempo.

12:49 da tarde  
Blogger Alentejano said...

Um grande beijo para a Rita.

6:07 da tarde  
Blogger Alberto Oliveira said...

... efectivamente, escrever é um exercício mental muito salutar. E de certo modo, também cultural. Porque escrever rotineiramente, nos obriga a exercícios de método, quase sem darmos por isso, porque passar da oralidade à escrita não é fácil e é com prazer que olhamos um texto saido da nossa mente para o papel ou, no caso vertente, para uma página de um blog.

Falar em voz alta connosco também é muito bom. Se assobiamos ou cantamos para nos distrair, porquê não falar? E podes crer que já ninguém repara nessas coisas...

Bjs e bom fim de semana!

7:59 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Eléctrico. lúcido. bonito. adorei.

12:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

linkada!

10:34 da manhã  
Blogger Sofia said...

Para a MIMI:

bloqueou o q?

bjs

11:25 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Adorei o texto! Com uma garra de viver muito intensa! Parabéns Sofia! Beijocas e até breve, Calaia

5:59 da tarde  

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