segunda-feira, setembro 18, 2006

O sorriso!

Miguel vivia apaixonado.
Miguel era talvez um eterno apaixonado. Em tudo em que entrava era com uma paixão enorme. No seu trabalho, na sua vida afectiva, na família. Não sabia fazê-lo de outro modo. Não conseguia passar pelas coisas ao de leve, sem lhes tocar e encontrar a sua essência.
Miguel era um jovem ainda. Trabalhava nos STCP e era responsável pela zona histórica do Porto. O percurso começava na Cordoaria e passava pela Rua dos Caldeireiros, Lóios Rua das Flores, S. Domingos. Junto ao mercado Ferreira Borges Miguel espreitava o rio enquanto deixava e apanhava passageiros. Miguel era apaixonado pelo seu Porto e em singular pelo seu rio. As cores do seu rio, escuras no Inverno e brilhantes de Verão faziam-no sonhar. Miguel além de apaixonado era também um sonhador. Daqui subia por Mouzinho da Silveira, Praça da Liberdade, Largo 1º Dezembro e chegava à Batalha. Depois dirigia-se para a Sé Catedral, outro local que o marcava. Pela sua posição na cidade, pela beleza das vistas que naquele local se podia alcançar, pelo seu silêncio à noite, onde muitas vezes rumava, e onde se sentava no cima de um muro olhando o seu rio enquanto desfrutava de um cigarro. Daqui partia rumo à Igreja dos Grilos, Palácio da Bolsa, S. Bento regressando assim à Cordoaria. Sabia o percurso de cor, por vezes nem sabia como chegava de uma paragem à outra.
O seu trabalho apaixonava-o. Falava dele como se de uma arte se tratasse. Sabia descrever as ruas e monumentos históricos por onde passava todos os dias melhor do que se de um professor de história se tratasse. Adorava o que fazia e aos amigos gabava-se muitas vezes de poder todos os dias viver o seu Porto por dentro, sentir a sua vida, a sua beleza e o seu cheiro.
Miguel cumprimentava todos os seus passageiros com um sorriso, dando os bons dias ou boas tardes consoante a hora do dia. Muitos já o conheciam, eram seus amigos, sorriam-lhe também. Miguel perguntava como andavam de saúde, muitos deles eram já idosos e deslocavam-se com dificuldade. Velhinhas sorridentes e desdentadas chamavam-lhe filhinho e contavam-lhe as suas desgraças: que este fim-de-semana os seus filhos não a tinham vindo ver; que o médico lhes tinha receitado mais um medicamento e que o dinheiro já não chegava; que os preços da fruta estavam exorbitantes e que nem isso já lhes era permitido comer. A todos, Miguel dava uma palavra de conforto, um sorriso amável, um ouvido atento. E todos eles sabiam da sua paixão.
Miguel andava apaixonado. Não sabia o nome da sua paixão mas sabia-lhe o rosto, a expressão e principalmente o seu sorriso. Via-a todos os dias no seu trajecto. Ela era da PSP do Porto, e fazia parte da polícia de trânsito na mesma zona em que Miguel trabalhava. E se não fosse no mercado Ferreira Borges, era na Batalha que a via ou na Praça da Liberdade. Quando se cruzavam, Miguel ao volante do seu autocarro, ela a pé com a sua farda impecavelmente lavada e passada a ferro, sorriam. Ele ainda se lembrava da primeira vez que a vira. Chamara-lhe atenção talvez por ser uma mulher-polícia, mas também pelo seu porte sensual. A farda ficava-lhe bem, era alta, pernas esguias, anca arredondada e saliente, peito firme. Apreciava em particular o seu rabo-de cavalo, por cima do qual colocava muitas vezes o seu boné azul-escuro. Tinha uns olhos vivos e da primeira vez que viu Miguel ajudou-o a retomar a sua marcha mandando parar uns automóveis que desciam da praça, e sorriu-lhe.
Assim nasceu a paixão dele. Ao longo de todo o seu percurso procurava-a. Sabia que a encontrava mais a cima ou mais a baixo, de manhã ou de tarde. E passou a sorrir-lhe sempre que a via. Um dia acenou-lhe até. O seu coração agitou-se, afinal ela era uma autoridade. A polícia desviou o olhar e mandou-o seguir sem desta vez lhe retribuir o sorriso.
Miguel sonhava com a sua musa. Fora do trabalho não a procurava, sentia receio de saber mais da vida dela. Não queria saber se era casada ou se tinha filhos. Isso iria matar o seu coração. Queria tê-la assim para ele, queria ter o seu sorriso, a sua atenção, mesmo sendo ela com o intuito de desembaraçar o trânsito. Achava que ela também o amava, porque lhe sorria sempre, excepto daquela vez do seu aceno. Miguel desejava conhece-la mais aprofundadamente mas temia perde-la de vez, e isso impedia-o de procurá-la de outra forma. Á noite na varanda do seu quarto, sonhava com ela, numa vida com ela, levá-la de manha para a sede da PSP, beijá-la e pedir-lhe cuidado na estrada, subir para o seu autocarro e sentir-se um homem feliz. Á noite, chegar a casa e sentir o cheiro dos seus cozinhados, jantarem de mãos dadas e depois mais à noitinha amarem-se com ternura, adormecendo em seguida abraçados.
Miguel vivia com os pais a quem amava acima de tudo. Era um bom filho, cuidadoso e preocupado. Tratava do pai acamado dando-lhe tudo o que podia e que ele necessitava, para o fazer sentir-se melhor. Comprara-lhe uma cama articulada e levava-lhe todos os dias o jornal, O Primeiro de Janeiro, que o pai devorava querendo manter-se útil e actualizado. Quando Miguel chegava à noite para jantar, discutiam as noticias, as obras do metro, os prejuízos dos comerciantes, a subida dos impostos ou mais uma vitória do Futebol Clube do Porto.
Um dia, seguindo pelo seu percurso habitual, apanhou a D. Beatriz na Rua das Flores. Ia para a Batalha.
- Bom dia filhinho, como estás hoje?
- Bom dia Dª Beatriz, o seu joelho como anda?
- Olha, com sempre meu amor, cada dia parece que piora. À noite na cama, deitadinha até que estou bem, mas de manhã quando salto da cama….. olha, são umas dores que nem te conto. Ontem falei com a Maria, sabes quem é a Maria? A minha vizinha do segundo?... Sim sabes, aquela que vem sempre cheia de sacos, e sempre mal-humorada e cheia de pressa, bom disse-me que eram artroses que também as tinha e que as dela eram piores. Olha piores, sabe lá bem ela as dores que eu cá tenho…
Miguel ia sorrindo e abanando com a cabeça. Procurava a sua paixão, hoje ainda não a tinha visto. A velhota parou de se lamentar. Miguel, sempre atento, olhou-a pelo retrovisor:
- Estou a ouvi-la D. Beatriz, e depois?
- Estás nada filhinho. Estás é à procura dela. Já a viste hoje? Porque não lhe falas? Sabes onde trabalha, um dia enche-te de coragem e vai procurá-la.
Miguel como que atordoado tentou sorrir:
- De quem fala D. Beatriz?
- De quem falo? Pensas que andamos todos a dormir? Somos velhos, temos as nossas dores, dormimos mal de noite, mas quando estamos no autocarro temos os olhos bem abertos. Queremos ver tudo, para onde nos levas e se nos levas em segurança. Achas que não te observamos?
Miguel ficou nervoso. Pensava que só ele era senhor dos seus sentimentos. Mas como as velhotas tinham dado por ela? Nem sempre a encontrava no mesmo sítio! Por vezes elas até já nem estavam sentadas no seu autocarro! “Cuscas” de velhas!
- Não fiques para aí atrapalhado amor. Já te conheço há muitos anos. Podias ser meu neto. Eu bem vejo o teu sorriso quando a vês. Os teus olhos ficam mais alegres e brilhantes. Olha, brilham tanto como quando o sol se põe no rio. Sabes como é?
Miguel já não sabia o que dizer ou fazer. Limitava-se a olhá-la pelo retrovisor.
- Nunca reparas-te como nos calamos todos quando a vemos? Já a conhecemos de cor, achamos lindo o vosso amor. Esperamos todos os dias que pares o autocarro, e lhe vás lá declarar esse amor que sentes. Porque não o fazes filhinho?
Tinham chegado à Batalha. Miguel ainda estava sem voz. Não consegui pensar em nada para lhe dizer. Ela descia ali. Ao descer, ainda lhe pousou a mão no ombro e sussurrou-lhe “Não tenhas medo!”
Nesse dia Miguel não a viu. Passaram-se mais dois sem a ver e ele começava-se a preocupar. Estaria de férias? Doente? Passou a andar mais calado, mais distante com os seus amigos passageiros. Os velhotes compreendiam-lhe a angústia e tentavam não lhe atrapalhar a procura.
Passaram-se dez dias, e Miguel não era o mesmo. À D. Beatriz partia-lhe o coração ver assim o seu motorista preferido. Perguntou-lhe se estava doente e aconselhou-o a ir a um. “Estás com muito má cara menino!” dizia ela, com um sorriso triste. Miguel tentava manter as forças e agradar a todos. Em casa também o seu pai o sentia diferente. Muitos eram os dias em que se esquecia do jornal e tinha deixado de o ver jantar. Desculpava-se com uma dor de cabeça e fechava-se no quarto.
No dia 15 de Setembro, o jornal que trazia nesse dia para o pai, desfez-lhe o mistério. “Jovem polícia morre, após mais de 10 dias em coma” O título de primeira página do Primeiro de Janeiro feriu-o como uma bala. Desfolhou o jornal para ler a notícia completa. Não queria acreditar no que o seu coração lhe dizia. Não era ela, não podia ser.
Mas era-o de facto. A notícia explicava como a jovem polícia de 33 anos não tinha resistido aos danos causados pelo grave acidente de viação de que tinha sido vitima. Madalena. Chamava-se Madalena. Atropelada num domingo à noite, por um automóvel descontrolado, que descia a Rua dos Clérigos, e que a foi apanhar à berma da estrada. Viu a sua foto no jornal, viu o seu sorriso. Pela primeira vez soube o seu nome a sua idade. E que deixava uma menina de 4 anos, órfã. E de como a sua vida virou uma tragédia.
No dia seguinte, Miguel não foi trabalhar. Seguiu o conselho da D. Beatriz e foi ao médico. Meteu baixa uns dias. O médico diagnosticou-lhe uma depressão. Quando Miguel tinha entrado no consultório, durante mais de meia hora a única coisa que conseguiu fazer foi chorar.
Uns dias depois regressou. Pediu mudança de zona. O seu chefe Martins assustou-se. Nunca Miguel se tinha mostrado disponível para tal. Miguel alegou algum cansaço e daí a sua depressão. Deram-lhe a linha 705 que vai do Hospital S. João até Valongo.
Miguel deixou assim de ver o seu rio. Deixou de subir à noite até á Sé Catedral para contempla-lo. Deixou de lado os seus amigos da zona histórica.
Dizem, quem o vê e o reconhece, que envelheceu, que está mais magro e que já não conversa com os seus passageiros.
Miguel continua apaixonado por ela, a sua musa. E tem a certeza que um dia a irá encontrar. Porque uma vez, e é capaz de jurar, viu-a ali para os lados da areosa, com o seu fato de policia bem engomado, e o seu rabo-de-cavalo firme escondido por baixo do seu boné de policia de transito.

15 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Gostei...
Realmente gostei...
Como diria o meu irmão Ricardinho, aquando da sua primeira desilusão amorosa "...Dói-me o coração!"

Até logo, prima

6:27 da tarde  
Blogger Andre said...

B-R-U-T-A-L!!!gostei!!!
bjs

8:26 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Haverá outras musas. Quem muito olha para trás, esquece-se de olhar para a frente...

9:28 da manhã  
Blogger Fortunata Godinho said...

Afinal já conheces o Porto de cor!!! Eheheh.
Muito bom.
Depois de ter lido a notícia no jornal, de facto há que pensar sobre toda a gente que fica assim desprovida da vida...
O teu texto foca ainda um ponto muito interessante: Os Motoristas. Que sabemos nós das suas vidas? Quando andava diariamente de autocarro, lembro-me bem que as caras eram familiares do dia a dia e lembro-me de um Motorista simpático, do 55 das 07:50, que sempre me dizia Bom dia, e esperava por mim, quando corria atrasada para a paragem.
Aos bons Motoristas, um bem hajam.

9:54 da manhã  
Blogger Maria Liberdade said...

oh que história triste. Eu achar que iriam ser felizes para sempre.

1:27 da tarde  
Blogger O Lápis said...

:) que delicia de história :) partilho da esperança do Frog :) ...ainda um dia esses dois, hão de chocar um com o outro!

Obrigada pela visita no Out:)

Um beijinho

Van

12:50 da tarde  
Blogger O Lápis said...

´...espero que tenhas visto todos os posts sobre a Tunisia :)

aquela praia era uma desbunda :)

-alias a viagem à tunisia foi uma desbunda, km e km de intenso prazer :)

Tinhamos ainda comprado uma viagem de dia a Tunis e Cartago, mas adormecemos e nem dois telemoveis a fazer pipipipi nos acordou!

Impecaveis levaram-nos a um almoço berbere e restituiram nos o resto do dinheiro :)) ´

Foram umas grandes ferias :) e por falar nisso...quem me dera ainda lá estar!! :))

beijinho azul :))

Vanda

1:20 da tarde  
Blogger nunocavaco said...

Uma estória triste mas relatada de uma forma linda. Contrastes.

4:43 da tarde  
Blogger Sea said...

Gostei de te ler :)
Obrigada pelas tuas palavras lá no Place.
Beijo enorme

4:57 da tarde  
Blogger A said...

Olá Sofia...

Adoro posts longos, adoro uma boa história e gosto ainda mais de poder comentar aquilo que leio e de te poder dar os parabéns...

Está mesmo muito bonito, mas muito triste... não gosto de finais tristes, finais infelizes...

Talvez o Miguel um dia encontre o sorriso ao virar da esquina...

Um beijo enorme do Algarve para o Porto,

Ana

8:32 da tarde  
Blogger Alentejano said...

Esta historia está magnifica, muito bem escrita ( quase que vejo o Miguel ) Um fim tragico como todas as historias da nossa vida,,,Já passou o tempo do princepe encantado com filhos a viver felizes para sempre.

Parabens,,,,Beijo.

10:39 da manhã  
Blogger Rui said...

Oportunidades perdidas. Irrepetiveis. Sem direito a segunda chance. Sem podermos voltar atrás. Arrependimento.

Fez mal em mudar de trajecto: era lá que tinha os seus melhores amigos. Vão sentir a falta dele - e ele deles.

12:20 da tarde  
Blogger o alquimista said...

Passei por aqui e achei um encanto o teu espaço...

1:21 da tarde  
Blogger Sea said...

Tens um desafio no Place :)

5:48 da tarde  
Blogger escorpiaotinhoso said...

Cruzei-me com o Miguel recentemente num Shopping junto ao Douro, mesmo alí na outra margem. Parecia babado, mão dada com a Marta, a tal que uns meses antes vislubrou ali para a Areosa..., e na altura lhe fez sentir electricidade espinha acima. Encontraram-se novamente junto à campa de Madalena cuja energia acabou por ter um efeito de cupido. É que a Marta é a irmã gémea da Madalena. E quem os viu há dias, diria que foram feitos um para o outro...

ET

10:21 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home