sexta-feira, maio 05, 2006

A ultima viagem (Parte 2)


Domingo, 20 de Fevereiro/05

Contra todos os pressupostos passamos a alfândega em menos de meia hora. Neste aspecto S. Tomé não se assemelha a um país de África. A propositada burocracia, as tentativas dos funcionários do estado para serem subornados por nós para nos facilitar a entrada no país, nada disso se passou à chegada a esta ilha. Assim, eram 7 horas da manha e subíamos já a bordo de uma nova viagem, desta vez num carrinha Toyota de 8 lugares, já bastante usada e pouco conservada, para nos levar do aeroporto ao nosso destino final- o ilhéu das rolas.

O nosso guia chamava-se Severino Melo. Dizia ele que pertencia à família Melo de S.Tomé, uma família importante segundo o próprio, com vários elementos em lugares públicos. A viagem de 90 km iria demorar cerca de 3 horas. Isso mesmo, 3 horas de viagem para percorrer apenas 90km. O Severino dizia que a estrada era muito má mas o que nós encontramos foram estradas praticamente intransitáveis e que iam piorando à medida que nos deslocávamos para sul. A juntar a enormes buracos no pavimento, a locais sem qualquer ponta de alcatrão, juntava-se ainda umas quantas pontes caídas ou em muito mal estado que nos obrigavam a atravessar o rio através do seu próprio leito. Havia alturas em que a estrada dava lugar a simples caminhos no meio da intensa vegetação de S.Tomé, o que nos fazia imaginar que estávamos no meio da selva num safari.

O Severino ia apresentado os vários locais por onde íamos passando. Santana, a povoação mais perto da capital e que era a sua terra natal. Um amontoado de casas de madeira, pequenas palhotas de madeira escura, velha e sujas, era aquilo que conseguimos ver. E montanhas de gente. Homens, mulheres e crianças, espalhados por todos os lados. Sentados na berma das estradas, na porta das casas, nas pequenas lojas da aldeia. O Severino de minuto a minuto apitava na buzina da carrinha e ia cumprimentando parecia-nos que toda a gente.
- Todos somos amigos aqui, dizia, e esforçamo-nos para nunca haver brigas.
A população ia-nos saudando também, dizendo adeus e ofuscando-nos com os seus lindos sorrisos brancos.
Uns quilómetros mais à frente chegávamos à Roça de Água Izé imortalizada no livro de Miguel Sousa Tavares, “Equador”, leitura obrigatória a todos os que pensem conhecer S.Tomé e Príncipe. Aquilo que restava agora assemelhava-se a um enorme complexo fabril, com varias habitações em redor, escadarias e ruelas, como uma pequena vilazinha portuguesa. Mas como que uma vila fantasma. Vazia ou esvaziada de vida ou de um objectivo. O intenso labor de outros tempos era agora não mais que uma recordação. Tentei em vão imaginar como teria sido a roça no tempo dos portugueses. O Severino ia-nos dizendo que nesse tempo esta roça era uma das maiores e com maior produção de café e cacau. E acrescentava que depois que nos tínhamos vindo embora em 1975, tinha ele 5 anos, tudo tinha acabado. O governo tinha tomado conta da roça e depois dividido pela população, antigos trabalhadores na mesma. Hoje em dia cada um tinha o seu bocado e fazia dele aquilo que quisesse. Como o típico S. tomense não aprecia particularmente o trabalho, pode-se facilmente imaginar como se encontra agora a roça.

E o percurso, todo ele, toda a descida até ao sul, um imenso manto verde, um manto de vegetação. Mil espécies de arvores, de frutos, de arbustos, palmeiras, numa mistura difícil sequer de inumerar. E a estrada ia piorando, tornando-se mais difícil de transpor.
- Mais lá para a frente tem um pedaço de estrada melhor, ia dizendo o Severino, talvez para nos manter animados.
E prosseguia encosta abaixo, encosta acima, conduzindo-nos por uma mata espessa onde deixávamos até de ver o mar, onde nos sentíamos perdidos no verde ofuscante. E mais a frente, assim de repente, mais uma praia deslumbrante, o verde brilhante do mar, uma paisagem de cortar a respiração.

A população seguinte mais importante a que chegamos foi S. João de Angolares a cerca de 40 km do cais de embarque. A custo tentávamo-nos manter animados. Sempre à espera do tal pedaço de estrada melhor que parecia nunca mais surgir. Antes dele ainda tivemos que transpor vários ribeiros e até um rio, o Rio grande, exactamente por cima da água, em tábuas meticulosamente colocadas para servir de ponte. Isto porque esta via-se a poucos metros de nós, quase desfeita e a cair.
- Quando a água sobe, temos que arriscar pelas pontes, disse-nos o Severino. As pessoas desembarcam, e nós aceleramos, e seja o que deus quiser!
Sorrimos e demos graças a Deus pela estação das chuvas estar só no seu inicio.

Quando já todos pensávamos não aguentar mais, eis que finalmente chegamos ao cais de embarque, a Ponta da baleia. Do outro lado, e apenas a 20 minutos de barco, finalmente, o ilhéu das rolas. Despedimo-nos do Severino até outro dia.
Trinta e duas pessoas, sem malas, embarcam no barco do resort que nos levará ao nosso tão desejado destino. Sobre um mar agitado, quem disse que o mar era sossegado por estas paragens, lá íamos contando os minutos como que para chegar finalmente a casa. Durante todo o percurso do aeroporto até aqui, o calor tinha sido insuportável, mas no barco tornava-se pior, uma vez que viajávamos debaixo de sol e ainda vestidos com coletes salva-vidas. Lembro-me de olhar para o ilhéu e sentir que jamais o alcançaríamos, pois parecia sempre distante. E lembro-me da forte ondulação que me revolvia o estômago. E do verde. O verde exuberante dessa pequena ilha no meio do atlântico.

Eram quase 11 horas da manha quando desembarcamos no ilhéu. Extenuados pelo calor e pela longa viagem que se tinha iniciado de comboio no Porto, e tinha passado por esses diversos meios de transporte. O primeiro impacto nestas condições é quase sempre desanimador. Tanto pelo que passamos para isto? Isto é apenas uma ilha! Uma ilha diferente, exótica, deslumbrante mas....... o calor e o cansaço vencem a euforia natural que nos deveria atingir.
Próximo acontecimento: a welcome drink! Água de coco ao natural! Pois, ao natural mesmo! E depois finalmente o check-in no hotel. Ficamos instalados no quarto 303, que ficava em frente ao mar, ao jacuzzi e à piscina do resort. Estávamos ansiosos por nos livrar daquela roupa e poder refrescar-nos naquele imenso mar mas ainda faltavam as malas que tinham ficado do outro lado, no cais de embarque. Estas só chegaram ao fim de uma boa hora. Finalmente podíamos partir à descoberta do ilhéu, tomar banho nesse mar verde, esteirarmo-nos na areia e descansar!

Mas antes de tudo isso era preciso retemperar o estômago e daí que fomos almoçar ao Bar do Pepe. Umas sandwiches e muita bebida numa tentativa frustada de matar a sede. Perguntamos ao empregado do bar qual era a melhor praia por ali, ao que ele nos indicou a Praia do Café!
Seguindo as indicações que nos deram, lá fomos nós descobrir a Praia café. Passamos a recepção, a capela do ilhéu com a sua fachada branca e azul a lembrar algumas casas de Portugal, a praia dos pescadores. Nessa praia a primeira revelação. A exuberante vegetação tocava quase no mar. Meia dúzia de barcos de madeira, frágeis e simples, dos pescadores da aldeia, que serviam para fornecer o peixe para o restaurante do hotel e também para o consumo local da população. Habituados já aos turistas por aqueles lados, havia pescadores que ofereciam já almoços na praia por apenas 5 €. Nós, na verdade, não experimentamos. As condições de higiene em que eram confeccionados os alimentos eram para nós um mistério e preferimos não arriscar. Não é por nada de especial, mas quem vai à consulta do viajante antes de embarcar para S.Tomé e se vê confrontado com um grande numero de vacinas, medicamentos, conselhos médicos e outras profilaxias, fica um pouco assustado. E nenhum de nós estava disposto a contrair a malária ou outro tipo qualquer de doença local.

Depois, e transpondo finalmente a linha do equador para o hemisfério sul, lá encontramos a dita praia. Sem palavras! A cor da água era qualquer coisa de fantástico. Um verde quase esmeralda, uma areia quase branca. A paixão por África começou aqui!

Mas a verdadeira paixão, é pelas pessoas, principalmente pelas crianças. De todos os cantos, e enquanto nos dirigíamos para a praia, foram-nos assaltando pelo caminha, perguntado-nos alegremente o nome e pedindo doces. Foi assim que conhecemos o João. Este menino de 13 anos decidiu acompanhar-nos até a praia e com o seu sorriso branco resplandecente lá nos ia fazendo perguntas de Portugal e respondendo ás nossas questões. Foi o verdadeiro anfitrião de S. Tomé! Conversou muito, queria saber muitas coisas e contou-nos também alguns dos seus gostos e desejos. Era benfiquista, e queria ser engenheiro civil. Estudar em Lisboa na universidade técnica. Tinha família em Leiria e contava em Junho poder ir a Portugal visita-los. Desde logo ficou com o nosso convite de nos encontrarmos em Portugal. Ele meio maravilhado, meio desconfiado lá ia sorrindo.

Enquanto conversávamos com o nosso pequenos anfitrião, víamos ao longe a aglomerar-se umas nuvens negras que cobriam já as partes mais altas da ilha de S.Tomé à nossa frente.
- Vem aí chuva João?
Sim hoje ia chover com toda a certeza. Estávamos no inicio da época das chuvas em S.Tomé. A temperatura era mais elevada mas havia mais humidade e chovia quase todos os dias ao entardecer. E não foi preciso muito tempo para de facto começar a cair a chuva. Tivemos tempo apenas para uns banhos de mar e meia hora de descanso deitados na toalha. De repente, o João levantou-se e disse-nos:
- Vamos embora, vai chover!
Depressa nos levantamos, nos vestimos e nos pusemos a caminha. A chuva começou então a cair em pingos grossos que refrescavam e encharcavam ao mesmo tempo. Num segundo abateu-se uma verdadeira tempestade de vento e chuva à mistura.
- Temos que ir pela praia, gritou-nos o João, é perigoso ir por este caminho, ainda nos pode cair um coco na cabeça!!!
Assustados corremos atrás daquele menino que parecia tão indefeso e ao mesmo tempo tão forte e sabedor das coisas. A nossa fuga a correr durou para aí um minuto porque o calor e a humidade rapidamente nos tirou o fôlego para continuar. Paramos de correr e continuamos em passo mais lento e o João como bom anfitrião, abrandou também nunca nos abandonando. Parecia o fim do mundo. Era o paraíso transformado no inferno. Chuva torrencial, vento forte que nos atirava para trás, folhas pelo ar, o barulho das arvores atrás de nós, os fortes relâmpagos que cortavam a escuridão que de repente se tinha abatido no ilhéu.
Junto da aldeia dos pescadores despedimo-nos do João e seguindo pelo caminho já conhecido chegamos novamente ao Bar do Pepe. Parecia que todos tínhamos tido a mesma ideia e era vermo-nos todos engalfinhados no minúsculo espaço do bar. Olhávamos para a tempestade lá fora e sorrimos. O primeiro dia em S.Tomé e tínhamos sido logo confrontados com uma tempestade equatorial. Encharcados até aos ossos mas felizes rumamos ao nosso quarto para nos secarmos. Não convinha apanharmos uma constipação logo no primeiro dia. E assim foi o nosso primeiro dia de aventura no ilhéu, apanhados pelo que os locais chamaram de pequeno tufão.

16 Comments:

Blogger AlucarD said...

bem.... deve ter sido espectacular!! tb kero...
bom fim de semana!
beijos

10:45 da tarde  
Blogger Alentejano said...

Mas que grande inicio de viagem...até me deixas com agua na boca.

11:41 da tarde  
Blogger Isa e Luis said...

Não conheço África mas deixas-me com desejo de conhecer.
Um beijo
Luis

9:02 da manhã  
Blogger Fortunata Godinho said...

Ai como eu imagino o que foi... Já o sabia, mas le-lo é muito melhor!
A Paixão por aquela gente é de facto indescritivel. Para mim tb África se tornou uma "dependência", e S. Tomé depois de lido o Equador e com mais esta história, deve ser de facto "uma coisa"...

9:49 da manhã  
Blogger alice said...

bom dia, sofia ;)

como estás?

tinha saudades de vir aqui

são tomé é um dos meus destinos de eleição... invejo-te ;)

espero que estejas bem

um grande beijinho para ti

alice

(se quiseres, corrige o link)

9:51 da manhã  
Blogger Alberto Oliveira said...

... dá gosto ler as tua descrição dessa viagem. Espero pelo desenrolar da mesma e que não tenhas apanhado com um coco na cabeça!(eheheeh) Bom exame.

beijinhos.

12:43 da tarde  
Blogger Sea said...

Continuas a seduzir com o teu relato sobre São Tomé. Despretencioso. Gostei.
Um beijo e uma boa semana :)

1:24 da tarde  
Blogger Alentejano said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

2:53 da tarde  
Blogger Alentejano said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

3:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Estou a ver isso tudo que contas!!
E nessas 3 horas de apenas 90 km, adormeci, com o embalar dos solavancos e do cansaço da viagem de avião!

4:34 da tarde  
Blogger Rui said...

Viajei com as tuas palavras. Já posso dizer que lá estive também.

5:26 da tarde  
Blogger Joana Assis said...

as tuas palavras deixam k consigamos entrar no teu mundo..mt bem escrito, gostei! =)
*********

6:52 da tarde  
Blogger Sea said...

Vim deixar-te um beijo :) E cpmo é, Bicamos este fim de semana?

10:09 da manhã  
Blogger alice said...

bom dia, sofia ;)

obrigada pela tua visita

para quando um novo post?

ou uma nova viagem assim descrita?

um grande beijinho para ti,

alice

11:04 da manhã  
Blogger Vítor Vilar said...

É como se lá estivesse estado. Obrigado.

12:46 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Adorei a descrição, foi como se estivesse lá mais uma vez... Deixa saudade.Gostava de voltar lá...

4:32 da tarde  

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