Armando
Chama-se Armando e é escritor. Tem 82 anos e viveu uma vida plena, em cheio, repleta de histórias que tenta retratar agora nos seus livros. Armando nem sempre foi escritor mas desde sempre escreveu. Era talvez a sua Paixão, a mais verdadeira na vida. Tinha outras, muitas outras, mas esta sobrepunha-se a tudo.
Passou por Africa ficando-lhe as ideias liberais desses anos e o seu constante “mal dizer” dos poderes. De todos eles, fossem religiosos, políticos ou sociais. Por isso a sua escrita é comicamente mordaz. Quem o lê não deixa nunca de esboçar um sorriso. Era contra tudo e dizia que vivia à frente da civilização uns 300 anos. As pessoas à sua volta ouviam-no e sorriam. Hoje, talvez, olhando para ele na cama do hospital meditem nas suas palavras e na verdade que elas possam conter.
Armando é casado mas do seu casamento não teve filhos. Teve no entanto duas filhas antes de se casar, fruto da sua juventude rebelde, e que por ciúmes exagerados da sua mulher teve que manter afastadas uma vida inteira. Uma delas ainda viveu uns anos com o pai e com a madrasta, a mulher do Armando. Mas uma vida sofrida e amarga fê-la emigrar para Paris. Tentou libertar-se de uma culpa que não era a sua, refugiando-se no meio dos gauleses.
A outra filha, nunca assumida, viveu uma vida inteira sem pai. Ou com um pai sempre ausente. Estudou, casou, teve uma filha, enviuvou, e sempre distante do seu pai. As circunstâncias levaram a que Armando nunca a assumisse perante a sua mulher. Tentava compensa-la com visitas semanais feitas às escondidas, com mimos controlados e ocasionais. Em casa inventava viagens ou discussões para se poder ausentar indo ao encontro da sua família de sangue.
Armando não era um homem fugaz ou inconsequente como se poderia de certo pensar. Armando amava demais as mulheres da sua vida e esforçava-se ao máximo por protegê-las, por evitar magoá-las, por fazê-las sofrer. Ninguém o poderia condenar por isso. Os seus esforços nesse sentido não surtiram grandes efeitos, no entanto. É vê-las agora, à volta da sua cama de hospital, e reconhecer o sofrimento em todas elas. A sua única mulher profundamente perdida por o ver a morrer e por reconhecer finalmente, aos 81 anos, as filhas que o marido teve e que sempre tentou esquecer. A filha emigrada, sofrendo longe, vivendo em sobressalto sempre que o telefone toca na sua casa de Paris. A filha à força ignorada, tentando recuperar uma vida inteira de carinhos e emoções que nunca pôde ter do pai, vida essa que vê agora esfumar-se lenta e dolorosamente. A neta, afastada toda uma vida do avô, incapaz sequer de o visitar, tal a dor lhe perpassa o coração. E a sua pequena bisneta ainda totalmente incapaz de sentir a tragédia da sua família mas que, também ela, um dia verterá uma lágrima por Armando. Recordando a vida infeliz que o seu bisavô teve e que se esforçava ao máximo por manter.
Armando nunca foi feliz. Teve momentos de felicidade. Mas o seu constante balancear de vidas manteve-o em constantes sobressaltos, tristezas e lamentações por uma vida que ele desejou diferente.
Há 2 meses Armando teve um AVC. Um bloqueio numa das suas artérias impediu a corrente sanguínea de lhe chegar ao cérebro. Foi levado para hospital e a sua vida mudou. Armando teve inúmeras sequelas: paralisou do lado esquerdo; perdeu a fala; parte da visão e da audição. A idade avançada não ajudou Armando em nada. Um mês depois a imobilização e as pequenas tromboses que se iam sucedendo impuseram-lhe uma amputação. Aos 82 anos Armando perdia a sua perna esquerda. Num dos seus breves momentos de lucidez o escritor, alegrando os enfraquecidos corações das suas mulheres e amigos, disse que ainda ia acabar o livro que tinha começado a escrever. Armando não queria partir sem acabar mais esta sua missão.
O livro continua à sua espera. Armando continua na cama do hospital. O seu corpo lentamente vai deixando de funcionar. É alimentado apenas com soro. O estômago não funciona mais. Os rins e a bexiga também não. Os enfermeiros dizem que ele já não sofre. Mas Armando continua vivo. À sua volta todos se questionam como ainda resiste. O seu coração é forte e é grande. Vive ainda agarrado à sua triste vida. Talvez tentando em vão recompô-la, refazê-la. Armando vive ainda agarrado à sua Paixão, a sua escrita. Armando quer acabar o seu livro. Na sua inconsciente morbidez Armando sabe que não pode morrer assim.
(Armando, isto é para ti. Vai em Paz. Nós nunca te deixaremos morrer.)
Passou por Africa ficando-lhe as ideias liberais desses anos e o seu constante “mal dizer” dos poderes. De todos eles, fossem religiosos, políticos ou sociais. Por isso a sua escrita é comicamente mordaz. Quem o lê não deixa nunca de esboçar um sorriso. Era contra tudo e dizia que vivia à frente da civilização uns 300 anos. As pessoas à sua volta ouviam-no e sorriam. Hoje, talvez, olhando para ele na cama do hospital meditem nas suas palavras e na verdade que elas possam conter.
Armando é casado mas do seu casamento não teve filhos. Teve no entanto duas filhas antes de se casar, fruto da sua juventude rebelde, e que por ciúmes exagerados da sua mulher teve que manter afastadas uma vida inteira. Uma delas ainda viveu uns anos com o pai e com a madrasta, a mulher do Armando. Mas uma vida sofrida e amarga fê-la emigrar para Paris. Tentou libertar-se de uma culpa que não era a sua, refugiando-se no meio dos gauleses.
A outra filha, nunca assumida, viveu uma vida inteira sem pai. Ou com um pai sempre ausente. Estudou, casou, teve uma filha, enviuvou, e sempre distante do seu pai. As circunstâncias levaram a que Armando nunca a assumisse perante a sua mulher. Tentava compensa-la com visitas semanais feitas às escondidas, com mimos controlados e ocasionais. Em casa inventava viagens ou discussões para se poder ausentar indo ao encontro da sua família de sangue.
Armando não era um homem fugaz ou inconsequente como se poderia de certo pensar. Armando amava demais as mulheres da sua vida e esforçava-se ao máximo por protegê-las, por evitar magoá-las, por fazê-las sofrer. Ninguém o poderia condenar por isso. Os seus esforços nesse sentido não surtiram grandes efeitos, no entanto. É vê-las agora, à volta da sua cama de hospital, e reconhecer o sofrimento em todas elas. A sua única mulher profundamente perdida por o ver a morrer e por reconhecer finalmente, aos 81 anos, as filhas que o marido teve e que sempre tentou esquecer. A filha emigrada, sofrendo longe, vivendo em sobressalto sempre que o telefone toca na sua casa de Paris. A filha à força ignorada, tentando recuperar uma vida inteira de carinhos e emoções que nunca pôde ter do pai, vida essa que vê agora esfumar-se lenta e dolorosamente. A neta, afastada toda uma vida do avô, incapaz sequer de o visitar, tal a dor lhe perpassa o coração. E a sua pequena bisneta ainda totalmente incapaz de sentir a tragédia da sua família mas que, também ela, um dia verterá uma lágrima por Armando. Recordando a vida infeliz que o seu bisavô teve e que se esforçava ao máximo por manter.
Armando nunca foi feliz. Teve momentos de felicidade. Mas o seu constante balancear de vidas manteve-o em constantes sobressaltos, tristezas e lamentações por uma vida que ele desejou diferente.
Há 2 meses Armando teve um AVC. Um bloqueio numa das suas artérias impediu a corrente sanguínea de lhe chegar ao cérebro. Foi levado para hospital e a sua vida mudou. Armando teve inúmeras sequelas: paralisou do lado esquerdo; perdeu a fala; parte da visão e da audição. A idade avançada não ajudou Armando em nada. Um mês depois a imobilização e as pequenas tromboses que se iam sucedendo impuseram-lhe uma amputação. Aos 82 anos Armando perdia a sua perna esquerda. Num dos seus breves momentos de lucidez o escritor, alegrando os enfraquecidos corações das suas mulheres e amigos, disse que ainda ia acabar o livro que tinha começado a escrever. Armando não queria partir sem acabar mais esta sua missão.
O livro continua à sua espera. Armando continua na cama do hospital. O seu corpo lentamente vai deixando de funcionar. É alimentado apenas com soro. O estômago não funciona mais. Os rins e a bexiga também não. Os enfermeiros dizem que ele já não sofre. Mas Armando continua vivo. À sua volta todos se questionam como ainda resiste. O seu coração é forte e é grande. Vive ainda agarrado à sua triste vida. Talvez tentando em vão recompô-la, refazê-la. Armando vive ainda agarrado à sua Paixão, a sua escrita. Armando quer acabar o seu livro. Na sua inconsciente morbidez Armando sabe que não pode morrer assim.
(Armando, isto é para ti. Vai em Paz. Nós nunca te deixaremos morrer.)