Chama-se Pedro e é uma das pessoas mais incríveis que conheci até hoje. Conheci-o há muitos anos atrás era eu ainda uma criança. Vivemos na mesma cidade e frequentamos as mesmas escolas. Conheço-o desde sempre mas nem desde sempre nos falamos. A primeira vez que o vi deve ter sido durante a primária. O Pedro é mais velho que eu um ano e quando entrei para a primeira classe ele andava já no segundo ano. Lembro-me de o ver a jogar à bola no meu primeiro dia de escola e de pela primeira vez o admirar pela sua alegria e vivacidade. Corria veloz atrás de uma bola e não sentia medo algum em enfrentar o adversário. O objectivo era chegar à baliza contrária e marcar golo. Nunca o vi desfalecer ou desistir mesmo quando a sua equipa perdia. Incentivava os colegas e sorria, sorria muito. Depois do jogo enquanto que os colegas de equipa desmoralizavam e se sentavam macambúzios a comer o seu lanche depois de mais uma derrota, o Pedro servia de alento a todos eles. Pegava com todos fazendo-os rir das próprias asneiras e ridicularizando a falta de jeito que todos pareciam ter para jogar à bola. Acabava por pôr todos a rir e talvez por isso fosse admirado e querido por todos. Durante toda a escola primária lembro-me de o ver a jogar à bola. Nunca falamos e acho que até passei despercebida dele durante esse tempo.
Ficamos amigos anos mais tarde já no liceu. O Pedro era um rapaz alegre. Nunca vi aquele miúdo triste ou de mau humor. Tinha sempre uma palavra a dizer: ou contando uma piada; ou dizendo uma asneira; ou metendo-se com as raparigas do liceu que coravam quando por ele eram notadas. O Pedro era bonito, desde novo o seu ar rebelde atraía muitas miúdas. Conhecemo-nos por amigos em comum e sempre me tratou muito bem. Sorria muito quando nos cruzávamos no corredor e dizia-me “como vai a mais bela flor deste jardim?”. Corei muitas vezes ao ouvir o seu elogio e ele sorria ainda mais, continuando o seu caminho sem se voltar para trás.
Depois do liceu veio a Faculdade. Seguimos caminhos diferentes mas ainda assim próximos. Cursos diferentes mas na mesma cidade. Os percursos eram por isso comuns e tornamo-nos mais amigos e companheiros. O Pedro tinha crescido, estava mais maduro mas mesmo assim menos do que nós. Continuava brincalhão, fazia muitos disparates e alegrava os nossos dias fazendo-nos rir muito.
Éramos um grupo de cinco pessoas que iam de Gaia para o Porto todos os dias estudar. Eu, o Pedro, a Mariana, o João e o Miguel. Tornamo-nos se certa forma amigos íntimos. Partilhávamos as emoções da vida universitária, os nossos medos e frustrações e também as nossas paixões e alegrias. De todos o Pedro era o mais hilariante. Fazia-nos rir até às lágrimas mesmo com os seus conflitos e problemas pessoais ou de estudo. Secretamente admirava-o e nutria por ele um grande carinho. Sentia-o como sendo um irmão mais velho que nos protege acima de tudo e nos ajuda a caminhar em frente “Sempre para a frente!” dizia-me ele quando desabafava sobre algum problema, “nunca olhes para trás, sempre em frente!”
Invejava a sua força, a sua capacidade de dar a volta sempre por cima e essencialmente a sua alegria. Nunca o imaginava só ou triste, para mim, o Pedro era a felicidade personificada. E como me sentia bem na sua companhia. Eu e os outros. Se um dia faltava às aulas por carolice ou doença a sua ausência era de todo notada. O dia não amanhecia da mesma forma quando o Pedro não nos acompanhava. Caminhávamos mais apreensivos para um novo dia de estudo e trabalho e sentíamos falta do seu sorriso para nos aconchegar os medos.
As diversas circunstâncias das nossas vidas foram aos poucos alargando a distancia que nos unia. Os namoricos mais ou menos sérios, os chumbos, os colegas de curso, as diferentes festas, as diferentes noitadas. Permanecemos amigos, sempre, mas em mundos diferentes.
Anos mais tarde, só muitos anos mais tarde me tornei sua verdadeira amiga. “As telhas encobrem muita coisa” disse-me ele um dia. E na verdade, os telhados cumprem a sua função à risca, protegem o nosso mundo do lado de fora, abafam o casulo que é a nossa vida não deixando que nada nem ninguém o penetrem.
Já durante a sua fase adulta o Pedro perdeu a mãe e o pai num acidente de viação. O seu maior golpe na vida, o mais marcante e com certeza o mais doloroso. O Pedro viu-se de repente órfão, sozinho. Pela primeira vez na vida vi o Pedro triste e talvez por isso mesmo me tivesse sentido ainda mais triste e com medo. Afinal ninguém estava imune à tristeza. Ali estava o meu querido amigo devastado de dor, incapaz de se levantar de me fazer sorrir, de me apoiar. E também ali estava eu incapaz de o fazer sorrir, de lhe dar de volta a sua alegria, de lhe retribuir todos os bons momentos que me proporcionou ao longo de toda uma vida. Que agonia senti, que desespero, tão perdida que eu fiquei. Como desejei ser forte, como me recriminei por não ter aprendido com ele o acto de dar força a alguém, de animar, de fazer alguém feliz.
Mas o Pedro deu mais uma vez a volta por cima e encarou uma vez mais a vida que lhe tinha sido destinada. Mais maduro por certo, mais consciente, mais marcado mas sempre com a força que lhe conheci e com a mesma alegria. A mesma ou uma muito parecida. A alegria nunca é a mesma depois de se perder alguém que se ama. Muito menos uma mãe e um pai, pilares da nossa existência. Reconheci isso anos mais tarde quando me disse “a morte dos meus pais foi o facto que virou a minha vida. Vi-me confrontado com uma situação com a qual não sabia lidar e a qual não podia mudar.” A morte é assim mesmo, a coisa mais definitiva que há. Aprende-se a lidar com ela mas nunca se pode inverter os seus efeitos. “E jurei a mim mesmo que nunca mais nada, nem ninguém me iria fazer sofrer e deitar abaixo como nesse dia esse acontecimento.”
E o Pedro voltou a sorrir e a fazer sorrir. A dor da sua perda, essa, guardou-a para si no fundo do seu coração e das suas memórias.
Faz hoje quatro anos que me tornei mais sua amiga, a sua melhor amiga como ele carinhosamente o diz. Falamos muito, de tudo, sem tabus. Rimos como loucos, choramos quando precisamos e conhecemo-nos como mais ninguém nos conhece. E por isso hoje sim me sinto sua amiga. A auréola de felicidade que sempre lhe vi era afinal pura ilusão minha. Era assim que o gostava de ver, de o sentir. Porque era assim que precisava que ele fosse. Porque o queria feliz, porque o queria meu amigo, porque o queria forte, porque precisava dele e da sua ajuda para eu mesma me sentir bem.
O Pedro dá-me muita paz. É verdade, transmite-me muita paz, muita calma. Consegue-me chamar à razão quando me sinto perdida nas profundezas do meu coração. E quando perco a cabeça e me torno intransigente, fala-me directamente à alma e amolece-me este coração por vezes frio.
O Pedro é hoje em dia um profissional excepcional. Director na área comercial, responsável pelo mercado externo de uma empresa que se dedica à produção de vinho do Porto. Percorre o mundo à procura de mais e mais clientes. Pela sua atitude positiva tem conseguido grandes êxitos. Tem contactos nos quatro cantos do mundo, desde Africa às Américas, passando pela Ásia até à nossa velhinha Europa. Para ele não há impossíveis na profissão e a todos os problemas responde ainda com mais força e energia. Passa grande parte do seu tempo a viajar, conheceu mundos diferentes, pessoas diferentes, culturas diferentes, que fizeram dele o homem excepcional que sempre reconheci.
Sempre lhe tinha conhecido diversas namoradas, umas mais chegadas do que outras. E sempre que lhe perguntava quando se casaria, ele me respondia “Mais cedo do que tu julgas! Qualquer dia apareço-te lá em casa de convite na mão.” E sorria, sempre aquele sorriso. Eu anuía, muito pouco convencida disso mas confiante que um dia isso de certo aconteceria. Depois como se veio a confirmar o Pedro nunca casou.
Um dia chegou ao pé de mim e beijando-me na face, pegou-me pela mão e afastando-me do nosso grupo de amigos disse-me “Preciso de falar contigo!” Desconcertada com todo aquele mistério segui-o. Com o coração a pulsar e os pensamentos em alvoroço segui-o até a uma sala mais recatada do clube de leitura a que ambos pertencíamos. Sentia-o nervoso e indeciso sobre se deveria de falar ou não. E eu sem saber bem como lidar com a situação. “Então, disse-lhe eu, que tens para me contar? Fala de uma vez que me estás a assustar!” O Pedro não sorriu como sempre fazia quando o pressionava a contar-me algo. Estava apreensivo, como que envergonhado. Começou a falar. Falou muito, dos nossos tempos de adolescência, da universidade, dos pais, da profissão. Eu ia-o seguindo no meandro das suas divagações e tentava devagar chegar ao assunto que tanto o afligia. Ele dava luta, deslizava ao de leve sobre o principal, tentava mudar de assunto, voltava a ele quando menos esperava.
Estivemos nisso horas. Quando eu já pensava desistir mais por cansaço do que por desinteresse, ele olhando-me nos olhos disse-me “Sabes que sempre fui apaixonado pela Mariana?”
“A Mariana", pensei, logo a Mariana!
Não consegui deixar escapar o meu espanto e de certo a minha desilusão. Como que arrependido o Pedro tentou desvalorizar a questão forçando um sorriso que eu sabia não ser sentido.
A Mariana tinha casada há uns anos com um alemão. Tínhamos ido todos ao seu casamento e tínhamos todos sido testemunhas da sua felicidade. Mentalmente recuei uns anos atrás tentando descortinar por entre os fios na minha memória algo que me levasse a concluir isso mesmo. O Pedro apaixonado pela Mariana!! Quem diria!!
Timidamente o Pedro começou a sua história. Era verdade mesmo, havia muitos anos atrás que se tinha deixado apaixonar pela Mariana. Ela tinha qualquer coisa que o atraía por demais. Era o seu sorriso, os seus olhos, a sua forma de pensar. Algo os unia desde sempre, e ele nem sabia bem explicar o que era. Havia uma cumplicidade explícita, quase como se os dois se complementassem de alguma forma. Mas tinham sido sempre amigos. Ele nunca tinha tentado nenhuma aproximação ou sequer uma confissão. Gostava demais dela para a colocar numa situação dessas. O Pedro não queria nunca perturbar a felicidade dela. Gostava demasiado dela para a fazer passar por isso.
“Ohhh Pedro, estás a falar a verdade, não me estas a contar mais uma das tuas historias?”, eu continuava pasma. Tinha perdido totalmente o sentido das coisas. Não concebia como alguém poderia manter um sentimento tão belo como este parecia ser, durante tanto tempo. Como o Pedro deveria ter sofrido todos estes anos.
Tentei lembrar-me do dia em que a Mariana se casou. Lembro-me perfeitamente dessa tarde de Setembro, quente como o são os dias mais fortes do Verão. A Mariana entrou na igreja de braço dado com o irmão. Estava linda, parecia uma princesa. O cabelo solto, o vestido justo, imaculadamente branco, que a faziam parecer uma daquelas modelos anorécticas tão na moda agora. O véu cobrindo-lhe o rosto…. Durante a festa lembrava-me do Pedro a beber, bebeu muito nesse dia. Mas isso tal como todos nós, acho eu. Foi uma festa memorável, ficamos a dançar até de manha. Comemos muito, brincamos muito, rimos bastante e bebemos demais. Definitivamente todos bebemos demais.
Todos estes anos e eu sem conhecer o coração do Pedro. A verdade é que nunca tinha entendido bem porque é que ele nunca se ligava demasiado a nenhuma mulher mas desculpava-o pela sua rebeldia e eterna juventude.
E o Pedro continuava a falar dela, como que hipnotizado, “sabes que cheguei a achar que ela sentia algo por mim também, os nossos olhares não eram inocentes, acredita que não!” Eu acreditava, eu absorvia todas as palavras do Pedro e ia acreditando. O seu tom de voz, o seu olhar, a sua postura dizia tudo. Ele era um homem apaixonado. Dez anos depois ele continuava um homem apaixonado. Os seus olhos brilhavam, a sua voz tinha acalmado, o Pedro parecia flutuar quando falava na Mariana.
E eu desiludida. Um peso no peito, uma súbita incapacidade de respirar, “porquê ela, pensava eu, mas e porque não uma qualquer outra de nós?” Lutava por não demonstrar o que me ia na alma mas o Pedro conhecia-me bem demais. “Lamento desiludir-te amiga, mas as coisas são mesmo assim, muitas vezes desejei que tudo isto fosse diferente!”
Passaram-se alguns dias antes de poder falar com o Pedro de novo. Compromissos de ambas as partes tornaram impossível até uma saída à noite para tomar café. Passei a semana toda com o Pedro na cabeça. Como era possível, eu nunca ter suspeitado de nada. E a Mariana, será que ela sabia? Tinha que estar com o Pedro, precisava de lhe perguntar mais pormenores, o porquê do seu segredo, porque nunca se abriu com ninguém. E principalmente, porquê agora?
Na sexta-feira seguinte liguei-lhe para o telemóvel, “olá linda, estava à espera do teu telefonema!” Meu Deus, como ele me conhecia bem. Quando nos encontramos no café recebeu-me com um sorriso rasgado. “Eu sabia que me ias ligar. Não te preocupes comigo, porque eu estou bem!” Parecia-me bem de facto, o seu sorriso lindo tinha voltado, estava de novo bem-humorado e até se meteu com a empregada do café reclamando pelo preço dos cafés ”oh menina, qualquer dia não ganho para vir aqui tomar o meu café. Mais cinco cêntimos? Isto é um roubo!” A empregada sorria, já habituada aos seus comentários e brincadeiras. O Pedro era assim, conseguia colocar a todos um sorriso nos lábios. Até uma reclamação sua parecia o melhor dos elogios.
Acabei o meu chá de menta e perguntei-lhe “Como estás amigo? Fiquei preocupada contigo!” O Pedro estava bem. Tinha apenas sentido necessidade de falar comigo. Há muito tempo que o devia ter feito. Quantas vezes o tinha pensado e tentado fazer, mas à última da hora perdia sempre a coragem.
O Pedro ia respondendo calmamente a todas as minhas perguntas. Quase nem o deixava respirar. Não, nunca tinha contado nada à Mariana. Sim, ainda gostava muito da Mariana. Se se sentia só? “Que perguntas difíceis fazes amiga!” O Pedro não se sentia só, o Pedro tinha muitos amigos, o Pedro tinha-se habituado à sua vida de solteirão e não a trocava por nada. “Nunca me hei-de casar linda, agora sei bem disso!” Apesar do seu sorriso nos lábios e da sua calma aparente, as palavras do Pedro não me convenciam. Acho que sentia a sua tristeza e amargura por não poder ter a mulher que amava. Ou então era a minha própria amargura e frustração pelo seu amor impossível. Como a vida era injusta!
“Porque me resolveste contar agora Pedro, o que foi que aconteceu para te abrires comigo?” Senti-me ansiosa, estava louca por poder ajuda-lo, precisava de saber de tudo. Talvez houvesse uma forma de eu o ajudar, de o ajudar a ser feliz, como sempre pensei que ele era. “Essa é fácil, sorriu enquanto me piscava o olho, passei por ela a semana passada de carro. Como não me respondeu ao aceno de mão que lhe fiz resolvi ligar-lhe. Já não se fala aos amigos menina, perguntei, e ela riu-se muito, como só a minha Mariana o sabe fazer. Falamos cinco minutos mas aquilo bateu-me forte. Revivi tudo de novo, todo o meu sentimento por ela. Nesse dia à noite precisava de desabafar. Quem mais do que tu, querida amiga?”Não resisti a abraça-lo, apetecia-me chorar agarrada a ele. Mas tive vergonha, o meu amigo não precisava disso, não o merecia.
Hoje continuamos bons amigos, eu e o Pedro. Os melhores amigos. Ele feliz como sempre, alegre, bem disposto, boa companhia, bom amigo. Eu sempre necessitada dele, da sua alegria, da sua companhia e da sua amizade.
É verdade, ate me esquecia-a de vos dizer, o Pedro casa amanha com a Susana. É verdade, apareceu-me lá em casa há uns meses de convite na mão, sorrindo. Surpreendeu-me como sempre me disse que o ia fazer mas estava muito feliz. E eu, feliz fiquei Porque afinal, sabem, nem todas as histórias de amor acabam mal!